REVISTA ELETRÔNICA DA BIBLIOTECA VIRTUAL CONSUELO PONDÉ – N.3 MARÇO DE 2016

ARTIGO

 

 

PERCEPÇÕES SOBRE O RECÔNCAVO DA BAÍA DE TODOS-OS-SANTOS E SUAS IDENTIDADES MICRORREGIONAIS.

 

Ronan Rebouças Caires de Brito

Texto e aquarelas

 

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Figura 1 – Representação em aquarela, de 2009, da “cidade invisível”, aquela que fazemos de conta que não existe, estamos acostumados a vê-la, mas não conseguimos ainda enxergá-la.

 

Neste artigo, o que está em jogo é a minha percepção direta, uma abordagem fenomenológica, na qual não importam os números nem as estatísticas, nem tampouco os planos e projetos que incidem ou fazem parte dos planejamentos futuros para a área da Baía de Todos-os-Santos. As conjunturas políticas regionais ficaram fora do escopo desse estudo. Começo a narrativa pela própria costa oeste de Salvador, aquela voltada para o poente, que de tanto os arquitetos, urbanistas e sociólogos chamarem de Subúrbio Ferroviário, cristalizou-se essa denominação perversa que significa uma sub-urbis, uma cidade menor, inferior. A Avenida Afrânio Peixoto é mais conhecida por Avenida Suburbana. Mas felizmente, a subjetividade dos moradores dessa área está blindada, e quando perguntados onde moram, dizem, Coutos Escada, Plataforma, Periperi etc. e nunca nos subúrbios. Prefiro chamar essas zonas de periferias, levando em conta mais uma conotação geográfica do que sócio urbana. A orla interna de Salvador fica aqui chamada de Cidade Baixa, desde o Comércio até São Tomé de Paripe. Começo com essa zona por ser a mais contígua às águas da Baía de Todos-os-Santos. Salvador se dilui em qualidade urbana na medida em que se desloca para o norte pela sua orla interna.

 

Não falo aqui em qualidade arquitetônica. A arquitetura sem arquitetos que domina todo o Recôncavo e se espalha pelas periferias de Salvador revela um meme estético e construtivo de notável reprodutibilidade.

 

 

arquitetura popular

 

Figura 2- Arquitetura popular contemporânea das periferias, que se

reproduz na forma por todo o Recôncavo. Aquarela, 2014.

Falo no padrão maltratado de urbanização, que os prefeitos preterem há anos em função de obras mais atrativas nas zonas de classe média, ou como agora, na orla oceânica. As edificações variam de um a normalmente três pavimentos, com lajes de concreto intermediárias e cobertas com telhas de fibrocimento. Invariavelmente, têm as fachadas mimetizando a arquitetura dita pós-moderna que invadiu os edifícios dos bairros nobres de Salvador na década de 1990. As fachadas são, em geral, ornadas de placas de cerâmica, originalmente produzidas para serem pisos e que compõem um mosaico interessante, colorido às vezes, refletindo o gosto abstrato dos donos. São residências gradeadas em ferro com padrões muito criativos. Esse padrão construtivo e estético se repete vezes sem conta em todo o Recôncavo. Os arquitetos da academia chamam pejorativamente essa arquitetura de “arquitetura suburbana”.

 

Suspeito que os arqueólogos do ano 3000, se ainda estivermos por aqui, ao escavarem em busca das civilizações do início do segundo milênio no Recôncavo, irão considerar essa arquitetura como a verdadeira arquitetura contemporânea da época, dada a sua ampla distribuição e reprodutibilidade, e não as casas e os edifícios chamados de contemporâneos, com adornos completamente supérfluos nas fachadas, os frontões e colunatas dos templos gregos e as cornijas da Antiguidade, ou ainda, outros superluxuosos com uma estética retrô, varandas arredondadas e janelas de vidros verdes blindex, que tanto poluem a fisionomia da Salvador pós-moderna e encantam os moradores, quando se mudam para a lenda que viram e se apaixonaram nas perspectivas coloridas dos jornais e nas maquetes dos show rooms, nelas os edifícios aparecem plenos, cercados de verde e sem nenhuma favela por perto.

 

Quando retornam cansados para casa, vindos do trabalho, é para aquela perspectiva colorida que voltam e que ficou impressa no imaginário, não importando quantas favelas circundam sua nova moradia, ou se da janela da varanda gourmet, até onde a vista alcança, apenas uma cidade marrom, sem reboco em primeiro plano é visualizada, com uma nesga de mar ao fundo, que é o orgulho da família.

 

Embora ainda sejam fortes as atividades da pesca e da mariscagem na Cidade Baixa, o produto está longe de ser confiável, pelas descargas de esgotos ilegais no litoral. Ao longo da Av. Afrânio Peixoto existe um comércio forte, de materiais de construção, desmontes, e depósitos infindáveis de peças usadas de automóveis. Na parte superior da falha de Salvador, uma sociedade se equilibra em pequenas residências à beira do precipício, sem fundações mais vigorosas, mas, felizmente, superdimensionadas nas suas ferragens, o que garante uma certa segurança na edificação, exceção em tempos de chuvas fortes quando o solo se encharca, expandindo-se, e na próxima estiagem se contraem provocando zonas de deslizamento. Mas nem assim, carregando bujões de gás nas costas ladeira acima ou carrinhos de mão com areia e outros materiais para novos mutirões, a sociedade perde o sentimento de pertencimento ao seu bairro, nos domingos tem a feijoada, a cerveja e o pagode na laje para animar o final de semana.

 

A via férrea passa ao longo dessa zona, cruzando a Enseada dos Cabritos sobre a ponte São João, seguindo toda a estreita encosta litorânea, margeia a Baía de Aratu, cruzando-a pela ponte de Mapele e depois inflexiona na altura da Passagem dos Teixeiras, seguindo para Candeias, Santo Amaro, Cachoeira e depois para o sul. Essa, sem dúvida, é a zona mais populosa da Baía de Todos-os-Santos e a que talvez acumule uma nanoeconomia informal importante a ser considerada em qualquer programa de desenvolvimento. Os bairros mais ao norte como Coutos e Peri-Peri são superpopulosos, talvez os de maior densidade do litoral, equiparando-se à do Miolo. O limite norte de Salvador, pela franja da baía, é a Baía de Aratu que divide suas águas entre o município de Salvador, Simões Filho e Candeias.

 

A Baía de Aratu, logo ao norte de Salvador, está ocupada por verdadeiros enclaves de territórios de excelência, que limitam o acesso de visitantes na maior parte de seu contorno. A Base Naval domina a parte sudeste da saída do Canal de Cotegipe, zona militar onde residem os oficiais de patentes mais altas da Marinha, cercada por uma proteção de acampamento de guerra e inserida em uma paisagem exuberante de florestas e banhada pela praia de Inema, resort militar preferido pelos nossos presidentes em férias. Outros enclaves ficam por conta, principalmente, do loteamento de portos, que nunca deveria ter sido permitido pelos sucessivos governos estaduais. O que deveriam ter feito era um Sistema Portuário, com características específicas sim, mas aberto a qualquer tipo de cliente que se dispusesse a pagar pelos serviços, e não a privatização em massa que hoje é o perímetro da Baía de Aratu.

 

As águas da Baía de Aratu são renovadas pelo Canal de Cotegipe, que tanto recebe o aporte de águas novas e limpas que entram pela grande boca da barra da Baía de Todos-os-Santos, quanto as devolvem, projetando-as, primeiramente, na face leste da Ilha de Maré, e depois se espalhando pelo Canal do Caboto, indo se misturar, na vazante, posteriormente, com aquelas vindas do nordeste da baía.[1] A ilha de Maré, bem como as ilhas dos Frades e de Bom Jesus dos Passos, fato desconhecido de muitos, pertencem ao município de Salvador. As localidades mais populosas da ilha de Maré, pela face leste, são os povoados de Bananeiras, Botelho e Oratório.

 

Na face oeste ficam Santana, Praia Grande e Caquende. Ao norte, Martelo, Ponta do Cavalo, Ponta Grossa e Maracanã. Ao sul, Itamoabo e Nossa Senhora das Neves. A Ilha de Maré vive da pesca, de uma pequena agricultura de subsistência, da visitação e do veraneio. São grandes as pressões ambientais sofridas pelos moradores da Ilha em função do Complexo Naval de Aratu. A queixa se traduz, em linhas gerais, na impossibilidade de manter a cultura pesqueira viva em função das imposições pela própria dinâmica do Complexo em relação às rotinas tradicionais de locais e períodos de pesca. Queixam-se também dos impactos da indústria na saúde e as eventuais mortandades de peixes. Apesar dessas pressões, a sociedade da Ilha de Maré possui um conhecimento tradicional significante sobre a cultura da pesca, e sobre a sua condição de uma sociedade sujeitada e sem muitas armas para lutar contra a desestabilização de sua cultura.[2]

 

Candeias, o que aconteceu com Candeias? De uma vila singela encravada na encosta, até as décadas de 1960/70, transformou-se em um confuso aglomerado urbano, meio cidade dormitório e de prestação de serviços para os negócios da Petrobras, meio centro de negócios diversos. Não é possível se distinguir uma identidade urbana, a arquitetura é a mesma padronizada para todo o Recôncavo, a cidade escorrega agora pela encosta e se esparrama ao longo da BA-522, ocupando os dois lados da estrada, com pousadas misturadas com oficinas e sedes de transportadoras que servem à Petrobras. O que restou da bucólica Candeias ficou, de alguma forma, resguardado no seu litoral, na franja do distrito de Passé, que se desloca acompanhando a linha da costa e fecha pelo norte o Canal do Caboto.

 

Existe, ao norte da Baía de Todos-os-Santos, um complexo insular que é atípico em todo o resto da baía, é um aglomerado de ilhas, capitaneadas em tamanho pela Ilha dos Frades, tendo como locais de maior visitação as localidades de Ponta de Nossa Senhora e Paramana. A Ponta de Nossa Senhora com a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, foi o local onde se desenrolou o romance entre Jana e Joel, romance de Xavier Marques.[3] Ao sul da ilha, existe a localidade de Loreto, enfeitada pela Casa Grande e a espetacular Igreja de Nossa Senhora do Loreto. A ilha é hoje uma propriedade privada que se estende por quase toda a superfície do território insular e que está sempre em disputa com os órgãos ambientais que discutem a legalidade de algumas ações de intervenção na ilha.

 

Esse complexo insular envolve também, além da Ilha dos Frades, as Ilhas de Bom Jesus dos Passos, Maria Guarda, Paty, Bimbarras e Madre de Deus, além de coroas transformadas em ilhas por aterros e aforadas à União por milionários, transformando-as em paraísos privados. As ilhas menores ainda guardam as tradições da pesca e da mariscagem, e suas sociedades organizadas que, vez ou outra, estão em lide com a Petrobras devido aos vazamentos constantes das atividades em Madre de Deus e Mataripe, que prejudicam suas atividades de pesca. Nessa região, pela face continental, está o complexo petrolífero, com a Refinaria Landulpho Alves em Mataripe, o Terminal Marítimo de Madre de Deus – TEMADRE, as demais instalações da Petrobras e de terceirizados em Madre de Deus e São Francisco do Conde. Praticamente toda a região continental dessa área é percorrida por pipelines conduzindo os mais diversos derivados do petróleo, seguindo boa parte deles para se constituírem em matéria-prima no Polo Petroquímico de Camaçari.

 

Mais a oeste fica São Francisco do Conde, com suas quatro feições culturais distintas e que modelam a sociedade. Uma fisionomia voltada para o contingente de funcionários da prefeitura, que movimentam recursos substanciais na capital do município, a pesca e a mariscagem, outra voltada para os negócios do petróleo, e uma rural, definida pelos campos de pecuária bem cuidados e pelas plantações comerciais de dendê e bambu, esta última para abastecer uma fábrica de papel craft e papelão em Santo Amaro da Purificação. São Francisco do Conde ainda guarda um enorme potencial de arquitetura colonial. Alguns monumentos recém-restaurados com recursos próprios da Prefeitura, outros mantidos com recursos da paróquia e outros ainda por serem restaurados.

 

Destacam-se entre eles o magnífico Convento de Santo Antônio da Ordem Franciscana e a Igreja Matriz de São Gonçalo de Amarante, todos na sede municipal. A Capela de Nossa Senhora do Vencimento, do antigo Engenho Paramirim, em ruínas agora, e às margens da BA-522, do lado esquerdo, no sentido Candeias-São Francisco do Conde, com suas duas torres encimadas por cúpulas azulejadas e magníficas. No alto do Monte Recôncavo, logo após a capela descrita, em direção a São Francisco do Conde, está a Igreja de Nossa Senhora do Monte Recôncavo, guardiã há quase quatrocentos anos da Baía de Todos-os-Santos, assentada no monte e visualizando a quase totalidade da baía. Outro monumento que necessita de urgente restauração pela sua importância histórica como um exemplar da arquitetura do século XIX, e por ter sido um importante centro de pesquisas sobre agricultura é a Imperial Escola Agrícola da Bahia, no distrito de São Bento das Lajes, e que hoje, só restam as ruínas das fachadas.

 

Na saída do Rio Subaé, encravada em sua foz, está a Ilha de Cajaíba, que também pertence a São Francisco do Conde, que abrigou o engenho do mesmo nome no passado e foi cotejada para se transformar em um grande eco luxury resort. Projeto pronto, estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ambiental EIA/RIMA, aprovados, com praias artificiais projetadas em função da pouca balneabilidade da costa com manguezais, mas, parece que faltou fôlego aos empresários proprietários em levar o empreendimento adiante ou talvez algum impedimento de ordem institucional. A ilha continua lá, a casa grande e a senzala estão em pé e é para lá onde as mulheres de São Francisco do Conde vão de canoas para mariscar na maré baixa e colher mangabas na sua restinga. Aproxima-se Santo Amaro da Purificação, uma mistura desproporcional de um patrimônio arquitetônico riquíssimo, com uma urbanização desorganizada e o comprometimento severo do Rio Subaé, que lhe corta as entranhas.

 

 

Uma pena, um rio que foi o grande condutor da riqueza para, e, de Santo Amaro, até o início do século XX, transformado em um esgoto de águas fétidas e mortas, até muito a jusante da cidade. Saveiros adentravam o rio e atracavam no cais durante as marés cheias, produtos eram trocados com Salvador, a cidade, nas sextas e sábados, ficava enfeitada com a floresta de mastros. O centro histórico está razoavelmente preservado e o seu litoral, que se alcança a partir da BA-878, ainda guarda recantos encantadores, tais como: São Brás, Acupe e Itapema. São Brás das moquecas de ostra e caldo de camarão. Pic 3

Figura 3- Igreja de Nossa Senhora da Purificação, Santo Amaro da Purificação. Aquarela, 2014.

 

Acupe, da mariscagem e da maricultura do camarão, e Itapema, da beleza pura e plena, com uma praça linear que se constitui no esqueleto central do vilarejo, desembocando em uma praia de areias alvas que cresce ou diminui em função dos grandes pulsos de marés. Itapema é, sem dúvida, um dos lugares mais encantadores dessa parte do Recôncavo. Por lá, certa vez, ouvi estórias de um velho mestre, que transportava em seu saveiro de vela de içar, sal ensacado, produzido nas salinas, onde hoje são os viveiros de camarão da Fazenda Oruabo, pertencente à Bahiapesca, empresa do Governo do Estado da Bahia.O sal era levado para Salvador e para Nazaré das Farinhas. Outras cargas transportadas eram os feixes de lenha que abasteciam as caldeiras dos navios a vapor da Companhia de Navegação Baiana e os alambiques de Santo Amaro da Purificação. Conversas sem fim, estórias e histórias também sem fim. Durante essa conversa na varanda de um estabelecimento com esse velho de 90 anos, de bengala e lúcido, apesar de sequelado por um derrame controlado, um grupo de homens jovens adentra o bar/restaurante/casa de família fazendo a maior algazarra e começam a jogar pela janela as tralhas acumuladas por outro velho que morava em um quarto de janela para a rua. Fiquei a princípio sem saber o que estava acontecendo. Era na verdade uma faxina completa no quarto do velho, cama, roupas, sapatos e tudo o mais que ele havia acumulado nos últimos anos era jogado fora pela janela. Vale dizer que um ninho de ratos seria mais interessante do que aquilo, sapatos que não eram usados há décadas, recobertos de mofo e poeira, colchão sujo e afinado por dezenas de anos de peso de corpo sobre ele. Não ouvi nenhum choro, só alegria e brincadeiras com o velho que só fazia sorrir. Logo depois, trouxeram cama nova, colchão decente, sapatos e roupas para o velho. Não sei se os jovens eram parentes de alguém da casa, o nível da conversa não sugeria isso, fizeram tudo aquilo por bondade pura, e de lá da varanda, junto ao velho saveirista, só se via uma minúscula linha dourada no horizonte, que era Salvador iluminado pelos últimos raios do Sol.

 

Na mesma costa, fica Saubara um pouco mais ao sul, com a sede municipal afastada da costa, que não é balneária, porque é repleta de florestas de mangues, circundados por banhados e apicuns. Saubara, além das atividades da pesca e da mariscagem, também revela uma pecuária organizada com extensas e bem cuidadas pastagens. A sede municipal fervilha de gente, o comércio é ativo e as noites movimentadas pelas baladas dos bares e restaurantes de frutos do mar, principalmente. O próximo lugarejo ao sul é Cabuçu, esse sim, todo voltado para o mar com praias lindas, mas obliteradas por uma infinidade de barracas alinhadas umas ao lado das outras, prejudicando a vista belíssima de boa parte da Baía de Todos-os-Santos. O vilarejo pertence ao município de Saubara e se desenvolve praticamente ao longo de um litoral permeado de praias, manguezais e banhados, portanto, local preferencial das farras de finais de semana dos que moram em Santo Amaro da Purificação, Cachoeira e dos veranistas que vêm desses mesmos lugares ou de Feira de Santana.

 

Toda essa costa que se estende até a Vila de Bom Jesus dos Pobres, quase que sem limites definidos com Cabuçu, chega até Monte Cristo, final da linha, e já na entrada da foz do Rio Paraguaçu. Cabuçu tem uma forte relação com a pesca e a mariscagem. De todos os mariscos, o chumbinho ou papa-fumo ou bebe-fumo, todos sinônimos, é o de maior ocorrência, inclusive como matéria-prima dos sambaquis do Recôncavo.

 

 

Figura 4 – Banhados no litoral de Cabuçu, Município de Saubara. Aquarela, 2014.

 

Voltando do conjunto de localidades iniciado por São Brás e finalizado por MonteCristo, continuando agora pela BR-420 que se conecta com a BA-878 entre Santo Amaro da Purificação e Cachoeira, abrem-se na paisagem os canaviais do Iguape, do lado leste do contraforte do Baixo Paraguaçu.

 

Nesse ambiente ainda de paisagem muito bem preservada, descortina-se o Iguape (ou Lagamar do Paraguaçu), que é um alargamento do rio, banhando as cidades de Santiago do Iguape, São Francisco do Paraguaçu e Maragogipe.

 

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Figura 5 – Canaviais do Vale do Iguape, Município de Cachoeira.

Óleo sobre musseline, sobre compensado, 2009.

Santiago do Iguape, lugarejo singelo que se destaca como uma região de pescadores, marisqueiras, e pequenos agricultores, com uma história forte de vários assentamentos quilombolas ao longo da BA-880, ainda no município de Cachoeira. A vila tem poucas ruas paralelas, que desembocam nas margens do Rio Paraguaçu, onde ficam o porto das canoas e a notável Igreja de Santiago do Iguape, no estilo barroco tardio, com suas duas torres, foi reconstruída no século XIX, mas com uma história de construções e demolições anteriores desde o século XVII. São também notáveis as talhas em madeira das suas portas e janelas, ainda no Lagamar do Paraguaçu, cujas margens são todas recobertas por densos manguezais, em uma primeira linha de costa, e seguida depois por uma paisagem espetacular de dendezeiros permeados por mangueiras e alguns pastos.

 

Olhando de frente para Maragogipe, fica a vila de São Francisco do Iguape, das ostras grandes e das moquecas colossais. Lugarejo eminentemente de pescadores de origem quilombola, que não praticam mais uma agricultura significativa. As terras circunvizinhas foram tornadas em Reservas Particulares do Patrimônio Nacional- RPPN por um proprietário privado que adquiriu as terras e conseguiu, da Arquidiocese de Salvador, o aforamento do Convento de Santo Antônio do Iguape, pensando talvez, um dia, em transformá-lo em um equipamento hoteleiro, mas até agora não foi adiante com o projeto. O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Ministério da Cultura só recuperou a Igreja da Ordem terceira, visto que é um convento franciscano. Pic 6

Figura 6 – Igreja de Santiago do Iguape e detalhe de uma talha

em madeiras de uma das suas janelas. Aquarela, 2014.

 

 

 

 

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Figura 7 – Ruínas do Convento de Santo Antônio do Paraguaçu no Vale

do Iguape, Cachoeira. Apenas a Igreja foi restaurada. Aquarela, 2007.

É lamentável o estado de deterioração do segundo convento barroco do Brasil, só antecedido em antiguidade pelo de Cairu. A pedra fundamental do convento foi lançada em 1658,[4] já tendo sido no local erigida no entorno de 1649, uma casa de recolhimento e sua capela. Durante o intervalo entre 1654 e 1658, os frades e leigos começaram, lentamente, a acumular material para o que seria depois a Igreja e o Convento. As pedras de arenito vieram de pedreiras próximas, a madeira das matas contíguas e as telhas e tijolos das olarias de Maragogipe.

 

Não se sabe ao certo a data de finalização do conjunto, mas supõe-se que a igreja ficou pronta em 1660 e o Convento em 1686. Esse conjunto notável funcionou como um pequeno hospital, acolhendo os infectados pela febre amarela que começou em 1686, matando muita gente em Salvador e no Recôncavo, e mais tarde, em 1855, tratou dos enfermos da epidemia de cólera-morbo. Nessa última epidemia, 35.980 pessoas morreram, moradoras de Salvador e do Recôncavo, sendo que Salvador, Cachoeira e Santo Amaro foram as mais afetadas […Aos doentes, remédios; aos moribundos, os sacramentos, e aos mortos, sepultura…].[5]

 

Voltando para a BA-420, chega-se em Cachoeira, que olha de frente para São Félix, através das primeiras águas do Rio Paraguaçu depois da Represa de Pedra do Cavalo. Cachoeira já foi comentada na Seção I deste Capítulo, mas vale ainda ressaltar a qualidade impressionante da sua momumentália, tanto civil quanto religiosa. Praticamente, toda a cidade guarda as feições originais de suas edificações, todas de uma elegância delicada e de estéticas complementares.

 

 

 

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Figura 8 – Convento do Carmo em Cachoeira. Aquarela, 2009.

 

O rio Paraguaçu, logo a jusante da Barragem Pedra do Cavalo, ainda exibe uma beleza exuberante com seus afloramentos rochosos e as primeiras águas doces que banham Cachoeira e São Félix.

 

 

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Figura 9 – As primeiras águas à jusante da Barragem de Pedra do Cavalo com Cachoeira, ao fundo. Aquarela, 2014.

 

Do outro lado do rio, São Félix, que praticamente vive nas sombras da fama de Cachoeira, mas possui o Centro Cultural Dannemann onde se realiza a Bienal do Recôncavo, e uma fábrica de charutos do mesmo grupo. A sociedade é vigorosa nas tradições da pesca, e talvez mais, na pequena agricultura. Quem visita São Felix pode contemplar uma cidade quase que linear, acompanhando a via férrea e se espalhando pela encosta com casinhas singelas e despretensiosas nos seus desenhos. São Félix tem importância fundamental como território de passagem para a BR-101, via Muritiba, situada logo acima do contraforte, ou para a BA-001 Via Maragogipe e São Roque do Paraguaçu. A BR-420 segue ao longo do rio Paraguaçu, indo encontrar as vilas de Coqueiro e logo em seguida Nagé, pertencentes ao município de Maragogipe.

 

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Figura 10 – Porto do vilarejo de Coqueiros, Município

de Maragogipe. Aquarela, 2014.

Tanto Coqueiros quanto Nagé, têm as suas economias voltadas para pesca, mariscagem e para a cerâmica, que já foi emblemática no artesanato do Recôncavo, mas hoje, precisaria de uma injeção de tradição para que voltasse a representar as panelas e vasos cozidos em fogueiras (como são até hoje), mas, sem as tinturas e formas que mais as aproximam das cerâmicas capixabas. Perderam bastante a singeleza dos ornamentos riscados no barro mole, como faziam seus antepassados Tupinambás. Situação semelhante encontra-se nas olarias de Maragogipinho, às margens do Rio Jaguaripe. A cidade de Maragogipe já teve uma importância na produção de charutos de qualidade para a exportação, os charutos Suerdieck que fechou em 1992, deixou um contingente enorme de trabalhadores desempregados tanto no plantio do fumo

quanto na confecção dos charutos, essa, predominantemente de responsabilidade das mulheres. As mulheres que faziam os charutos ainda existem e passaram a tecnologia adiante. Não é raro, em Maragogipe ou mesmo em Cachoeira, encontrar pequenos fabricos domésticos, de velhas charuteiras da Suerdieck, onde podem ser comprados os mesmos modelos exportados, mas obviamente sem um controle de qualidade pela dispersão da produção. Ainda hoje em Maragogipe, São Félix, Muritiba ou mesmo na Feira de São Joaquim em Salvador, é possível se comprar os famosos charutos de torcida, irregulares, de fumo maduro e forte, que nos tempos dos saveiristas eram equipamentos indispensáveis para enfrentar a maresia das travessias da Baía de Todos-os-Santos, mordidos, babados e pendurados firmemente nos lábios dos marujos. Maragogipe também tem uma tradição forte de mariscagem e pescarias. Suas terras são maltratadas por uma agricultura equivocada, na qual a mandioca, o feijão e o milho são plantados ortogonalmente às curvas de nível, aumentando a lixiviação dos solos superficiais com as regas e com as chuvas.

 

A pecuária é incipiente, mas é forte em tradições e folguedos. Tem a festa de São Bartolomeu em setembro, que mobiliza uma grande regata desde a Baía de Aratu, as rezas na matriz, e a cidade se apronta para receber os velejadores com muita música e cerveja. O carnaval de lá é forte, colorido com seus mascarados. No município existem outros lugarejos encantadores, como Capanema e Guaí, incrustados em uma ainda exuberante Mata Atlântica e, ao mesmo tempo, nas margens dos mangues do Paraguaçu. Em Guaí se come um fantástico ensopado de Robalo.

 

São Roque. Mas é triste de se ver uma cidade que foi, no passado, uma interface importante entre a hidrovia e a ferrovia ser hoje invadida, sem baterem na porta da frente, pelo capital avassalador que não respeita os símbolos estéticos nem sociais. São Roque está situado em uma das regiões mais lindas da Baía de Todos-os-Santos, soberano, que foi olhando para a saída do rio, e hoje aleijado com as plataformas da Petrobrás/Odebrecht, e com a inconsequência da construção de um estaleiro que irá produzir petroleiros de grande porte, perturbando a paz do rio, com riscos imensos de acidentes ambientais e empurrando a Reserva Extrativista – RESEX do Iguape para o estrangulamento existente antes da Ilha dos Franceses. Um exemplo típico da truculência que resulta quando o empresariado se associa ao poder público para criar benefícios financeiros de um lado e políticos do outro. Isso é lamentável, ainda mais quando sociedades tradicionais e ingênuas se encantam à primeira vista e não conseguem antever o futuro que lhe arrebatará as tradições e o sossego.

 

Deixando a BR-420, a SW fica Nazaré das Farinhas, cidade que limita o último trecho navegável do Rio Jaguaripe e que é muito desatenciosa com o seu maior patrimônio paisagístico, o próprio rio. Seguindo pela BA-001, em direção à Ilha de Itaparica, pelo lado direito, aparece um pequeno vilarejo, Barreira do Jacuruna, debruçada sobre o rio do mesmo nome. Vila singela com uma praça, uma igreja e um rio piscoso, que na década de 70 abrigou um projeto de criação de ostras do mangue. Rendeu dissertações, teses, mas não produziu ostra nenhuma nem conseguiu transferir a tecnologia desenvolvida. Mais uma experiência que a UFBA se meteu quando não deveria. Pesquisa, ensino e extensão sim, execução, não, isso é com o Estado. Era um projeto conveniado entre a UFBA, a antiga SUDEPE e o Conselho Britânico. Barreira do Jacuruna é a última localidade a ter qualquer tributário que desemboca na Baía de Todos-os-Santos, antes da Entrada da BA-534, que vai até Barra do Paraguaçu passando por Salinas da Margarida. A primeira visão para quem adentra a BR-534 é a vista espetacular do Canal de Itaparica, visto por cima dos morros de Cações e Mutá, localidades pertencentes ao município de Jaguaripe. É uma panorâmica por cima de matas, manguezais, coroas de areia, visualizando-se o Canal de Itaparica com a Ilha ao fundo. A primeira localidade é a vila de Cações, praticamente uma única rua principal margeando a costa e no final uma pequena praça com poucas ruas ao redor. É um lugar de pescas, mariscagens, pouca agricultura, veraneios e de uma paz notável percebida no ritmo das suas gentes. Casas antigas de veraneio se misturam com a nova arquitetura contemporânea do Recôncavo, com as eternas grades de proteção de estilos os mais variados. A rua da praia é encantadora e se as praias são de pouca balneabilidade, a paisagem das coroas afloradas na maré vazia é exuberante.

 

 

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Figura 11- Casinha no litoral de Cações, Município e Jaguaripe. Aquarela, 2014.

 

Seguindo para o Norte, as próximas localidades são Mutá e Pirajuia, onde termina Jaguaripe e começa Salinas da Margarida, a partir de Encarnação. Mutá tem uma dinâmica urbana e social bem mais desenvolvida do que Cações, embora as duas desfrutem de uma promenade. A orla de Mutá tem habitações mais sofisticadas, tem a Igrejinha de Santo Antônio, padroeiro do lugar, e uma culinária fina, depurada no bambá (óleo de dendê não filtrado e que tem uma borra amarela no fundo da garrafa que a separa da flor, mais transparente) que elabora delícias com ostras, chumbinhos, siris catados, tainhas e um doce de groselha de se comer de joelhos.

 

Pirajuia já é mais singela, tem uma praça alongada e gramada em declive, a Igreja de Madre Deus, e pouca balneabilidade, o manguezal bloqueia a sua frente para o Canal de Itaparica, embora a pescaria e a mariscagem sejam fortes.

 

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Figura 12 – Igreja de Madre Deus, Pirajuia, Município de Jaguaripe. Aquarela, 2014.

 

 

Conheci por lá muita gente interessante reunida em um bar, onde a primeira sequência de conversa foi sobre os encantados do lugar e parecia unanimidade a crença nessas criaturas que se envultavam e ninguém via, outros faziam revoar pratos e garrafas do bar só com a mente, outro, ainda desafiava quem quer que fosse a lhe cravar uma faca no braço, no açougue local. Ninguém tinha coragem. Depois a conversa mudou para os tempos em que os saveiros levavam cargas para Salvador. Havia nessa reunião um velho mestre que levava o saveiro de vela de içar em qualquer tempo para Salvador, podia ser o maior temporal. O porão e a cobertura do tijupá (a cabine de madeira em duas águas dos saveiros de vela de içar e das lanchas de rabo-de-peixe de antigamente) iam abarrotados de sacas de farinha produzidas na região, em especial nas casas de farinha de Cações.

 

Não tinha leste-sudeste, por mais forte que fosse, que o impedisse de sair para entregar a carga na Feira de São Joaquim. Na volta então, o saveiro vazio e leve, com a escota (cabo que segura o punho da vela ao torno da popa) toda folgada, vento pelo través largo (quase de popa) e na velocidade do empuxo do vento, o saveiro “vinha que vinha sorrindo”, em alusão aos “bigodes” d´água que a proa desenhava no mar. Falava ele também do saveiro Vendaval, o mais veloz da baía, que saía de Maragogipe de noite, como todos, só que saía por último. Quando já pelas bandas de Itaparica, ainda escuro, ele ouvia o barulho atrás dele de um saveiro luvando (panejando, ou batendo o pano, porque a valuma, que é a parte mais externa da vela, só ficava com a corda que está embutida na sua bainha, e que é regulável, toda folgada), essa era a marca registrada do Vendaval. Fiquei depois pensando, uma noite tenebrosa de temporal, esse ente encantado batendo pano num barulho monótono e repetitivo até chegar a Salvador pelo amanhecer. Homens fortes, que Euclides da Cunha me perdoe.

 

As estórias de Pirajuia podem ser ouvidas em diferentes tons, em todos os vilarejos, todos têm algo a dizer sobre o mar e seus encantos e encantados. Encarnação é a próxima vila ao norte e não pertence mais a Jaguaripe, e sim a Salinas da Margarida. Lá também ouvi histórias, saveiros que foram feitos pelo mestre Antenor e eram verdadeiros azes nas regatas locais. Falaram de outros saveiros, feitos em Manguinhos, Iguape ou Cacha Pregos, tais como o Bambolê, o Tal, Ciclone, Mestre Tampão, Tigamar todos de vela de pena (vela latina triangular com mastro e verga, feitos para a pesca, diferente dos de vela de içar, que são para carga). Encarnação é famosa pela quantidade enorme de chumbinho que exporta para Salvador.

 

Os sambaquis são vistos em todos os lugares, as conchas vazias servem como a brita nas construções de concreto ou adornam os muros, os passeios e as fachadas das casas. As marisqueiras saem com a maré vazante, e na maré baixa, catam os chumbinhos que enchem baldes. Algumas levam panelas e os escaldam na sombra dos manguezais depois da mariscagem, utilizando como lenha os galhos do mangue, ou madeiras trazidas pela maré para ferver o marisco. Não botam água, as conchas se abrem com o calor e as partes moles são retiradas e depois ensacadas e congeladas para a exportação ou venda local. O ato de aferventar no local gera uma relação importante de amizade, porque nunca é uma somente que cozinha o marisco, ficam todas conversando em volta das pequenas fogueiras, enquanto as vasilhas estão no fogo, e depois, na catagem.

 

Assisti a um baile no grupo escolar local. Um evento decente. Os casais mais idosos, impecavelmente vestidos com roupas leves, levando suas filhas e filhos, também muito bem vestidos, a dançarem a noite toda ao som de uma banda formada por um tecladista da melhor qualidade, um cantor e um naipe de metais, sax, trompete e trombone, tocando os clássicos da música popular brasileira e boleros fenomenais. Muitas cervejas e nenhuma briga. O baile acabou de madrugada.

 

Salinas é, sem dúvida, o centro de negócios regional, vez que é a sede municipal. É uma cidade bem arrumada e ainda traz as lembranças nas casas antigas dos tempos e veraneios dos anos 1970. O comércio é ativo, exporta produtos para todas as outras vilas da região, embora a feira ainda seja feita em Nazaré, coisa difícil de entender, pela fartura de pescado e de terras agricultáveis. Agora, com a construção do Estaleiro, começaram a aparecer as placas por todos os lados da estrada anunciando terrenos e lotes para a construção de casas e condomínios.

 

Em seguida a Salinas, se desenvolve, paralela ao litoral, a localidade de Conceição de Salinas, outra vez, com uma promenade fantástica, embora com a assinatura das prefeituras que preferiram substituir os gramados à beira mar por espaços pavimentados e com bancos de cimento. Mas nem tudo pode ser como queremos. O que importa é que daí se descortina um mar infinito com vistas para o norte da Baía de Todos-os-Santos com uma alternância de morros e baixios, que ficam por trás das terras de São Francisco do Conde e da Ilha dos Frades. As praias crescem e se retraem com os pulsos das marés, e as coroas das marisqueiras estão sempre presentes, salteadas entre poças de águas mornas. Os veranistas ocuparam praticamente toda a faixa do litoral e as casas ficam vazias nas baixas temporadas. Nas ruas por detrás da Rua do Gravatá (que é a promenade) mora a maioria dos nativos. De Conceição de Salinas até Barra do Paraguaçu, tem a localidade de Cairu, com boas praias, todas pulsando com as marés, e a mariscagem sempre forte. Notável nessa região é a Barra do Paraguaçu, com o litoral ornado de casuarinas e casas de veraneio. Esse é o último portal pra quem vai adentrar o Rio Paraguaçu. Só existe um bar/restaurante e a paisagem da faixa litorânea é deslumbrante, conseguiram não pavimentar, a grama cresce no meio de barcos e canoas que ficam no seco para descanso ou manutenção. E por falar em canoas, as de madeira são raras em toda a região até agora descrita, afinal não existem mais vinháticos de 2 metros de diâmetro nas matas da região. As canoas são todas feitas de fibra de vidro e movidas a motor.

 

Adentrando o rio Paraguaçu a partir de Cairu, fica a última localidade antes de São Roque, Enseada, lugar humilde que confronta o aparato tecnológico se instalando no Estaleiro Enseada do Paraguaçu, já comentado na Seção I deste Capítulo. Saindo agora do continente, pelas laterais da Ponte do Funil, revela-se uma das mais belas paisagens do Canal de Itaparica. Pelo lado esquerdo de quem percorre a ponte, entrando na Ilha de Itaparica, fica a Ilha de Matarandiba, aquela onde Maria Rosa foi morar depois de se apaixonar pelo mulato que a maltratou no romance de Xavier Marques. Pelo lado direito, a vila de Jeribatuba, ancorada no tempo desde os tempos em que o navio de Maragogipe parava na ponte. Não cresceu muito nos últimos 40 anos, tempo em que a UFBA fez uma base por lá para estudar a reprodução da ostra do mangue, depois da iniciativa fracassada em Barreira do Jacuruna.

 

Eu tive o prazer de morar por um tempo nessa vila pacata de pescadores na década de 70, enquanto estagiava no Projeto Ostreicultura, que foi um braço do Projeto Ambientes Estuarinos, o primeiro projeto multidisciplinar da UFBA em recursos aquáticos. Havia uma ponte de madeira e umas casas na linha de frente para o mar, as casas ainda estão por lá. Em frente a Jeribatuba, do outro lado do Canal de Itaparica, fica a foz dos rios Jacuruna e Jacaré. Jeribatuba sobrevive da pesca e da mariscagem nas águas do Canal e nas lamas dos mangues do litoral.

 

A ilha de Itaparica tem em Jeribatuba e Matarandiba os portais de entrada para quem vem do sul. A Ilha tem duas faces distintas. A face do Canal é tipicamente estuarina, seja pela dinâmica de suas águas misturadas pelos rios Paraguaçu ao norte e as descargas de águas doces dos rios Jaguaripe, Jacuruna e Jacaré a sudoeste. A biota também é típica dos estuários, manguezais e sua fauna associada. A outra face recebe de frente as águas litorâneas vindas do oceano, movidas pela Corrente do Brasil, de circulação norte-sul. Mas, mesmo tendo essa costa aberta para o centro da Baía de Todos-os-Santos, nas regiões mais ao norte da ilha, a biota não é apenas aquela das águas oceânicas costeiras, os efeitos do vórtex, provocados pelas descargas do Paraguaçu, mesmo atenuadas pela barragem de Pedra do Cavalo, conseguem sugar parte das águas do Canal nas vazantes e as projeta nas costas de lajes rochosas de Itaparica. Tanto é verdade, que no porto de atracação dos ferries em Bom Despacho, os pilares de concreto estão incrustados de ostras, que são típicas de águas estuarinas. Essa tendência, no entanto, vai se diluindo à medida que vai se aproximando de Mar Grande e das outras vilas ao sul da Ilha.

 

Pelo sul, o primeiro vilarejo do município de Vera Cruz é Cacha Pregos, antiga armação baleeira, hoje voltada, exclusivamente, para o turismo de finais de semana ou veraneios de famílias tradicionais que aportam ali nos verões. Cacha Pregos talvez tenha sido uma das vilas que mais cresceu na ilha, ainda tem uma promenade, que era praticamente onde os veranistas tinham casas há trinta anos. Hoje, a cidade se expandiu muito para fora do litoral. Todas as vilas e aglomerações da costa oceânica têm seus litorais de lindas praias protegidas quase que em sua totalidade por uma franja de afloramentos rochosos que protegem suas enseadas e formam piscinas espetaculares. As praias do sul são mais abertas e sem essa proteção, que se concentram mais nas do norte.

 

Logo no sul da Ilha, pela parte do Canal, está a localidade de Catu, seguida por Baiacu, uma vila que surgiu e ainda está assentada, boa parte, em cima do apicum, com as habitações do primeiro plano litorâneo em palafitas, paredes de palhas cobertas de telhas de cerâmica ou de fibrocimento. Na medida em que as casas se afastam do litoral e ganham terreno firme, apresentam uma construção tradicional com tijolos e telhas. Nas segundas-feiras existe o “dominguinho” que nada mais é do que um prolongamento do domingo para tomar cerveja, e vem gente até de Itaparica. O jogo de futebol é forte e acontece no apicum durante a maré vazia. A vila é encantadora, e mais ainda a paisagem, que se abre para quem percorre a estrada entre a BA-001 e o vilarejo. Uma região extremamente bem conservada do ponto de vista ambiental, com uma densidade impressionante de florestas maduras.

 

Ainda nas águas do Canal de Itaparica fica a vila de Misericórdia, já no município de Itaparica. Misericórdia vive, quase que exclusivamente, de pesca e mariscagem, é de lá que saem os mariscos para abastecer grande parte dos veranistas de Itaparica e das vilas de Vera Cruz. Misericórdia não tem praias balneáveis, pois seu litoral fica incrustado no manguezal, mas tem um porto de canoas e uma ponte de madeira que aponta para a Ilha das Canas, hoje pertencente a um particular e ocupada com instalações sofisticadas, como muitas outras ilhotas de mangue, antes desabitadas, ou coroas aterradas nessa região mais ao norte do Canal de Itaparica, e que foram aforadas à União por milionários. Pontes, ancoradouros e heliportos são equipamentos obrigatórios nessas ilhas.

 

Pela face da Baía de Todos-os-Santos, do Terminal de Bom de Despacho para o norte, fica, inicialmente, a vila de Porto Santos, sossegada, prolongando-se pela costa e comprimida entre o mar e a encosta, com casas simples, e totalmente voltada para a pesca e para o veraneio. Em seguida vem Manguinhos, com um pouco mais de densidade urbana e uma orla ornada por coqueiros jovens. A pesca é forte, talvez mais que a mariscagem, tem um porto de canoas e saveiros, e os pescadores exploram os diversos bancos pesqueiros dentro da baía e alguns se arriscam com a pescaria na boca da barra, na abertura da Baía de Todos-os-Santos para o oceano. Em Manguinhos, pode-se pedir uma excelente moqueca de rabo-aberto (uma das variedades de vermelho) ou de cação, no bar de Toca, também proprietário e apaixonado por saveiros de corrida, cuja filha é mágica na labuta com o dendê e o coentro miúdo.

 

Na esteira para a chegada à cidade de Itaparica estão as vilas de Amoreiras e de Praia Grande, que hoje se fundiram em um mesmo estirão de praias lindas, tendo pela parte sul o afloramento de rochas, paraíso dos polvos e lagostas. Essa região está totalmente voltada para o lazer de finais de semana, para o veraneio e para as atividades que lhe dão suporte. Existe uma profusão de pousadas e restaurantes de frutos do mar e as ligações dessa região com a cidade Itaparica são difusas, sem distinção clara entre os urbanismos de uma e de outra nessa passagem.

 

A cidade de Itaparica parece também que parou no tempo, apesar de ser a sede municipal. Felizmente, o ambiente bucólico ainda permanece no Bulevar (Av. Dom Jerônimo). As ruas voltadas para o interior ainda mantêm a tipologia das casas da década de 1950, que os veranistas das famílias ricas de Salvador construíram inspiradas nos projetos prontos que vinham na revista “Mi Casita, Proyectos – Construcciones Sudamericanas”. A revista era vendida regularmente nas bancas de revistas, e os projetos fizeram muito sucesso por lá. São casas bem bonitas e amplas, no centro de belos terrenos, ornados por mangueiras e que trazem no arco das varandas, um adorno de pedras pintadas de preto. Essas casas têm as paredes, invariavelmente, pintadas de branco. Construções mais antigas estão na Praça Campo Formoso. As casas da população de renda mais baixa, que são a maioria, ficam na entrada da cidade em um enorme aglomerado. Construções emblemáticas como o Forte de São Lourenço e a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento fazem parte da monumentália militar e religiosa de Itaparica.

 

A vida boêmia é forte, os bares da Praça Virgílio Damásio andam cheios dia e noite e o Mercado Municipal é ponto de encontro dos moradores e dos veranistas tradicionais, que de manhã cedo vão beber o mingau ou comer o feijão e o mocotó com cerveja. Nos bares do mercado, se sabe de tudo, desde as conversas do finado escritor João Ubaldo Ribeiro, até as molequeiras que os que estão bebendo fazem com os que vão passando. Ouvi, por exemplo, um dos que bebiam gritar para outro que estava chegando de canoa na beira do cais: “fulano, essa canoa tem lugar para mais um corno?” o outro respondeu: “tem sim, pode embarcar”. Depois, o mesmo brincalhão chega para o açougueiro que pacientemente limpava uma peça de filé especial e diz: “rapaz, antigamente todo mundo tinha medo de açougueiro, um personagem temerário, com histórias de maldade e sua faca enorme e afiada. Hoje em dia, não tem mais isso, veja esse aqui, é corno, na última festa do padroeiro fizeram misérias com a mulher dele. Tá lembrado fulano?” O açougueiro respondeu: “me lembro assim por cima…”.

 

Pois é, essa é a Baía de Todos-os-Santos e seu Recôncavo de que eu gosto e que queria mostrar um pouco, tem muito mais, escondido em cada enseada, em cada fundo de canoa, embaixo dos panos dos saveiros e nas mãos grossas das marisqueiras, mas isso fica como parte dos segredos que não podem ser revelados, da labuta constante dos encantados que nos espiam por trás dos dendezeiros e das quizangas (raízes) do mangue.

 

Ronan Rebouças Caires de Brito é professor associado aposentado do Instituto de Biologia da UFBA, mestre em Ecotoxicologia pelo University College North Wales e doutor pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências.

 

 


 

[1] G. C. Lessa et al. “Oceanografia física”. In: V Hatje; J, B. Andrade (org.). Baía de Todos os Santos: aspectos oceanográficos. Salvador: EDUFBA, 2009.

[2] R. A. M. Hataya. Conhecimento tradicional dos pescadores e marisqueiras da comunidade de Bananeiras (Ilha de Maré, Salvador-BA) e os impactos do Complexo Industrial da Baía de Aratu (TCC de Graduação, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011).

[3] Xavier Marques. Jana e Joel. Salvador: Fundação Pedro Calmon (edição fac-similar)/UEFS Editora, 2009.

[4] F. I. Fonseca. Santo Antônio do Paraguaçu. Salvador: Publicação do Museu do Recôncavo, Wanderley Pinho, 1973.

[5] Fonseca. Santo Antônio do Paraguaçu, p. 14.