Condições de existência, corpo e saúde entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia: uma abordagem antropológica.

Abstract

A recente Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, publicada em 2008, contabilizou em 71 municípios brasileiros um total de 31.922 adultos nessa situação. Recentemente na cidade de Salvador foram identificadas 2.076 pessoas em situação de rua. O problema das pessoas em situação de rua nas grandes metrópoles brasileiras reflete a enorme desigualdade social existente no país e se constitui em importante questão social. O objetivo deste trabalho foi conhecer a realidade das pessoas em situação de rua na capital baiana, especialmente quanto às práticas e significados atribuídos ao corpo e ao processo saúde-doença, a partir de aproximações do cotidiano dos indivíduos; das condições de existência e experiências coletivamente compartilhadas. Tratou-se de um estudo qualitativo de enfoque antropológico com observação participante em duas instituições de cuidado direto a este público (uma em regime de abrigamento e a outra, convivência-dia), assim como nas ruas de Salvador, além de entrevistas semi-estruturadas com 13 indivíduos (abrigados e não abrigados), de ambos os sexos, com idades entre 30 e 66 anos. Foi realizada uma análise dos significados dos discursos, práticas e experiência, identificando categorias sócio-culturais centrais que os organizaram. Além da saúde (condições de higiene; doenças; percepção de saúde; significados de saúde e doença; relações com a rede de serviços) e do corpo (o corpo nas ruas; percepções e significados de corpo), outras categorias referentes ao cotidiano desta vivência foram razões de destino às ruas, locais de acomodação, alimentação, questões laborais e de renda, relações sociais, violência, trajetos e perspectivas futuras. Os resultados apontaram condições de existência circunscritas a inúmeras dificuldades e relações sociais marcadas por violência, preconceito e desvalorização. O corpo na rua encontra-se exposto a condições insalubres e precárias de cuidado, além de ser portador de marcas visíveis e “invisíveis”, estando associado a uma expressão concreta ou metafórica das dificuldades e sofrimentos relacionados à vivência nas ruas. Em relação ao processo saúde-doença, foram observadas condições precárias de manutenção de cuidados higiênicos; problemas de saúde (entre abrigados e não abrigados) como HIV-Aids, tuberculose, transtornos mentais/psiquiátricos, uso e abuso de substâncias psicoativas, questões de saúde bucal, dentre outros. Apesar disto, indivíduos de ambos os grupos relataram se sentir bem de saúde; tendo esta última sido associada à capacidade de resistência diária entre os não abrigados e a manutenção de cuidados, entre os abrigados. A doença, por sua vez, adquiriu alguns significados, dentre estes, se sentir debilitado. A relação com a rede de serviços, apesar de por considerável parte dos interlocutores acessados ter havido uma percepção de atendimento de qualidade, foi constatada como problemática em diversos sentidos (dificuldades de acesso pela ausência do porte de documentos; não poder arcar financeiramente com prescrições médicas, dentre outras). A saúde, atualmente conceituada em uma perspectiva ampla na realidade brasileira, se distancia das condições concretas experimentadas por este público, sendo variados os entraves que limitam seu alcance, o que merece cada vez mais ser investigado e desenvolvidas soluções.